Pisando pra causar

Faz tempo que a vida dura dos guetos desapareceu dos videoclipes de Rap, sendo substituída pela estética do luxo.
O culto aos objetos, como óculos, relógios, brilhantes, ouro, celulares, carros, iates, roupas e sneakers... (oops, sábado > 17h05 > centro de SP > um carro passa tocando Racionais com o volume a mil > isso quer dizer alguma coisa?!), bem como as marcas são os fetiches da cultura Hip Hop.

No caso dos sneakers ou tênis, a influência vai além da função de calçados feitos para a prática de esportes, se transformaram em itens fundamentais numa produção urbana, aprovados por variados estilos de vida, em qualquer lugar do mundo.
O lançamento e relançamento de modelos com design, cores e materiais variados ajudam a arrebatar corações e incentivar o colecionismo, deixando a indústria dos produtos esportivos ainda mais milionária.

O filme Just for Kicks apresenta algumas facetas desse mundo de abundância, em especial, a importância dos sneakers para a cultura Hip Hop. E eu pretendo repassar um pouco disso, aqui.

As origens do Estilo

Desde o começo da cultura Hip Hop (anos 70 nos EUA), ter estilo era fundamental, o que significava estar produzido ‘da cabeça aos pés’: Lee Ryder jeans, t-shits, tênis Puma de camurça colorida e boina Kangol.
Segundo depoimento no filme, era ‘coisa de pavão-macho... Sem styling ou a combinação correta de camiseta-boné-tênis, você ficava com um visual [zoado], tipo ninguém me pega’.

A paixão pelo basquete, a dança dos B-boys com suas manobras radicais e o comportamento no metrô, quando ‘o olhar está voltado para baixo’ reforçaram a necessidade de usar pisantes estilosos.
Quem não tinha dinheiro, precisava investir na vida útil dos tênis e ser criativo no estilo, daí surgiram hábitos como: limpar com escova de dente, customizar com canetinha e investir na variedade de cadarços, que além de cores variadas, tinham três tamanhos: M, Super e o Fat lace. E a inovação também acontecia com o uso de fios de metal.

Run-D.M.C. a paixão e o patrocínio alemão

No começo dos anos 80, as black bands traziam elementos divertidos do funk dos 70’, inspirados na psicodelia de George Clinton e seus projetos Funkadelic-Parliament. Os figurinos eram extravagantes, coloridos e misturados: óculos de sol, spikes, capacete nazista. O estilo B-boy também prevalecia e os sneakers ‘da hora’ ainda eram os ´Puma´ de camurça.

Mas em 1983, entrou em cena o Run-D.M.C., num estilo clean, meio gangster/mafioso, usando blazer de couro, malha de gola rolê, chapéu old school jogado de lado na cabeça, tudo em preto, inclusive o jeans e sneakers sem cadarço.

Usar sneakers sem cadarço era a descontextualização de uma situação recorrente nas penitenciárias americanas, onde os detentos recebiam os tênis sem cadarços para não correr o risco de virar uma arma. Nas ruas, o ‘tênis de marginal’ virou cool e ainda hoje, ganha atualizações, como o Varsity-Season da Converse AllStar.
http://www.converse-allstar.com.br/home/default.aspx






Um integrante do Run-D.M.C. conta que estava cansado dos Pumas de camurça, dos tons pastéis, queria algo novo, foi quando viu um modelo verde, com três listas, da marca alemã Adidas ( a história da marca e de seu fundador Adi Dassler também é ótima!). http://www.adidas.com/br
A paixão do Run-D.M.C. pelos sneakers de três listras se transformou na música MY ADIDAS (álbum Raising Hell), que virou Hit falando da cumplicidade entre os integrantes, os pisantes e as ruas de Nova York. ‘Ele passa, anda, decola, marca o chão..’: “Now, me and my Adidas do the illest things, we like to stomp out pimps with diamond rings, we slay all suckers who perpetrate, and lay down law from state to state, we travel on gravel, drit road or street, I wear my Adidas when I rock the beat on stage front page every show I go, it's Adidas on my feet high top or low, My Adidas... My Adidas...
O desejo de ter um Adidas atingiu os fãs do Run D.M.C. e em todas as cidades onde tocavam, era a marca das três listras que se via.

Em 1986, Ângelo Anastácio, manager da Adidas, comprovou a influência do Run-D.M.C., no show do Madison Square Garden, ao ver 20 mil pessoas cantando e sacudindo seus Adidas na mão.
Depois disso, o primeiro contrato de patrocínio entre rappers e uma marca esportiva foi assinado.
Campanhas da Adidas passaram a veicular a imagem do Run-D.M.C., uma linha com nome do grupo foi lançada e filmes foram feitos com todos os elementos da cultura Hip Hop. Outros itens de estilo foram criados, como raspar o cabelo com as três listras e os mini-tênis em dourado pra pendurar no correntão.
Recentemente, foi lançada a linha Adidas- Superstar, para comemorarar 35 anos de música.




Reverberações corporativas

Na seqüência, ‘cada seguimento do Hip Hop abraçou a sua marca’ e a Fila, a Nike e a Converse também fecharam seus contratos, entre outros, com
B-boys e skatistas.

Nesse período, a Nike era conhecida como marca de branco, até aparecer Michael Jordan - um talentoso atleta do basquete / NBA, ‘voando’ com seu uniforme branco e vermelho e calçando um par de tênis Nike.


Seu sucesso fez a Nike fechar contrato e lançar o Air Jordans. Para explicar a jogada, outro negro talentoso se juntou ao time, era o jovem cineasta Spike Lee.

Spike>Nike>Jordan fizeram a coisa certa! O tênis virou febre e ganhou atualização a cada temporada, ousando nos materiais e no design.
Se antes, um sneaker sujo era zoado, agora ‘ele’ era símbolo de poder e deveria ser ‘tratado como bijoux’.

Mas esse é o ponto onde, começam os problemas, quando todos são atraídos, mas nem todos podem ter, ‘o mundo fica selvagem’.
E os depoimentos exemplificam:
‘Acompanhado de um jeans Lewis, usar tênis virou lei, a ponto de ter que brigar por ele’,
‘É preciso usar facão pra defender o seu tênis’,
‘Ficava perigoso andar numa quebrada com um Jordan branco zerado, o cara podia voltar descalço’,
‘Quando neguinho chega perguntando que pé você calça, é roubo na certa e ainda batem com a sola do seu próprio tênis...’.

Nos anos 90, os tênis ampliaram sua influência e emprestaram o glamour casual às roupas de alfaiataria.
Com a “caça ao sneaker” instituída, surgiram revistas especializadas e as lojas disponibilizaram modelos feitos no mundo inteiro e as marcas passaram a lançar novidades sob os selos: tênis fora de catálogo/ retrô / exclusivo, alimentando a cobiça dos colecionadores de estilo, que passaram a barganhar nos estoques, comprar modelos especiais, mesmo sem gostar, levar três pares de cada modelo e até viajar a outro lugar em busca de modelos especiais.

Campanhas com astros aficionados por sneakers, como Jay Z, Puff Daddy, 50cc e Missy Elliot povoam as páginas das revistas, tudo, porque ‘o tênis para o Hip Hop é o mesmo que a cruz pro cristão. É religião, é identidade.

‘Eu adoro como esse tênis veste!’, ‘Parece Toc, mas espanco se [alguém] pisar no meu pé’.

http://www.youtube.com/watch?v=Zs1bmpRzF8E