Inland Insane

Quando o filme Império dos Sonhos [Inland Empire] de David Lynch foi apresentado em São Paulo, eu perdi. Normal, já que a disputa pelos ingressos da Mostra Internacional de Cinema é muito concorrida.

Antes do natal, Império dos Sonhos estreou em Porto Alegre e eu estava bem curiosa.
David Lynch é um diretor exótico, que nos desestabiliza por expor de forma perversa, o inconsciente humano. Justamente por isso, o entendimento e a aceitação do seu trabalho não são unânimes.
Sobre este novo filme, os comentários não eram bons. Então, me mandei pra sala de cinema.

Só me dei conta que o filme tinha três horas de duração, quando algumas pessoas resolveram trocar os bilhetes, por esse motivo.
Mas eu tinha tempo e acredito que ter visto o longa-performance ´Drawing Restraint 9´ de Matthew Barney tenha me preparado para tudo.
Saquei da bolsa balinhas de goma [com + vermelho] e uma garrafa de água com gás e relaxei na cadeira.

Enquanto poemsava [putz, este erro de digitação é muito bem vindo: pensar poeticamente, pode muito bem ser traduzido pelo verbo – poemsar. Os irmãos De Campos já devem ter descoberto isso...] que gosto da estética sombria e das casas-labirinto de David Lynch, o filme começou.

Os efeitos eram delirantes: luz estourada, ponto brilhante [demoníaco] nos olhos das personagens e os claro-escuros nos ambientes lembravam as pinturas de Caravaggio.
Os closes [hiper-realistas] deixavam os rostos das personagens em primeiro plano, do tamanho da tela de projeção, como se assim fosse possível penetrarmos em suas mentes, em seus sentimentos, nos seus interiores?!.
Laura Dern transitava pelo País das Maravilhas de Marshall McLuhan! Metalinguagem: o filme dentro do filme na tevê, uma mentira dentro de um sonho-pesadelo de Lynch!
Na calçada da fama, a lama social faz sua cama. A protagonista baleada, vomita sangue e morre, entre lúdicos e surtados homeless étnicos.
A história era digna de Lewis Carroll, mas no filme, os coelhos eram domésticos, não corriam apressados e não cruzavam com a protagonista. A sombra de suas orelhas era fixa e se projetava, linearmente, na parede.

Depois de uma hora de filme, as pessoas começaram a levantar na escuridão da sala de cinema, já semi-vazia [essa também foi uma imagem mencionada nos diálogos do filme]. Como fantasmas, se arrastaram até a porta de saída.
Duas ou três cadeiras depois da minha, uma moça sofreu para permanecer ao lado do seu acompanhante. Reclamou, bufou, praguejou, até que levantou e saiu... O acompanhante permaneceu hipnotizado.
Este não era um filme romântico, capaz de criar um clima numa noite de sexta-feira, nem de ação e entretenimento para se ver depois de um dia de trabalho.
O filme exige certo esforço, para acompanhar as personagens que se multiplicam, identificar as formas que se insinuam nos cenários carregados de escuridão.
Ainda não sei se achei este filme melhor ou pior que os outros. Mas isto não é o mais o importante...
Apesar da fragmentação, talvez, este seja o filme mais pop [isso é possível?] de Lynch.
A narrativa apresenta [explica?] mais as coisas... A abordagem do submundo, a aparência das coisas, dos afetos são diferentes.
Continuamos a nos sentir inseguros e estranhos, mas éjustamente esse o fio que nos guia até nossas estranhezas, as estranhezas do nosso vizinho, do mundo que ajudamos a construir a cada dia.
Se nos outros filmes a diferença grita nas formas incomuns das pessoas, neste, a diferença/convivência é étnica.

Na verdade, o filme é mais profundo que tudo isso.
E ainda tem as novidades proporcionadas pelo uso da tecnologia digital.
David Lynch, pra mim, é como um iceberg: só entendo o que vejo.
E o que vejo é suor, sangue, cabelos, rua, abajures - contrapontos acolhedores no cenário e casas que ganham uma vida estranha. Somos todos vizinhos... A casa somos nós?!

O filme termina com surpresinhas: uma baladinha funk black super bacana. [Aliás, durante o filme, aparecem vinhetas coreografadas super bacanas!] e Natasha Kinsky [perdi essa cena...?!]
A trilha também surpreende...
A voz do Beck é inconfundível, mas nos créditos finais aparecem músicas escritas e interpretadas por David Lynch... ?! [Onde eu estava, quando isso aconteceu, agora fiquei curiosa! Confesso que, por um momento, me perdi em pensamentos, tentando entender por que nós gastamos tanto tempo imersos em turbulências emocionais durante a vida! Será que neste momento, a trilha era do Lynch?]

Enquanto os créditos passavam, o mesmo funcionário que recebeu os bilhetes na entrada da sala de cinema trancou as portas de emergência.
Na área externa, a saída era indicada por uma moça, os outros ambientes já estavam fechados e à meia-luz.
Perguntei se podia ir ao banheiro, ela sorriu e sacodiu a cabeça, positivamente. Subi uma rampa e fiquei com medo de abrir a porta com imagem gigante de Marlene Dietrich.
No filme, as portas eram portais para outras realidades [inlands?]. Em função disto, fui a última a sair.
O lugar amplo, claro e brilhante do cinema perdeu sua função e os dois funcionários ansiosos, me aguardavam na saída. Agradeci e cruzei a porta.
Do outro lado, ainda havia vida nos restaurantes e no supermercado.

Gosto quando os filmes prolongam sua sensação, mesmo que se esteja em outros espaços... E a estranheza do filme me acompanhou até em casa.
Peguei um táxi com um motorista que corria muito, costurava o trânsito e freava bruscamente a cada aproximação com outro veículo. Passou até sinal vermelho e eu comecei a ter enjôo.
Depois de três horas no cinema, meu estômago estava sensível e eu queria dizer:
- Moço, manera aí, eu acabei de sair de um filme do David Lynch!
Resolvi não falar nada , nem reclamar e cheguei em casa [quase] voando.
O táxi arrancou, cantando pneus. Sério!
Eu, passei bem.

Crédito das fotos: http://www.cinemacafri.com/