Ao mestre com carinho: Guto Lacaz no mundo das coisas maravilhosas

Os objetos em suas formas, cores, materiais e funções estão sempre em stand by à espera de uma ação.

Fuçando em botões, alavancas, introduzindo pilhas, combinando plugs e pólos das tomadas e seguindo algumas instruções, podemos usufruir das benesses dos eletrodomésticos, como um aspirador de pó e uma furadeira.

Sabemos que, dentro de nossas casas, muitos problemas de espaço e de tempo podem ser resolvidos com uma escada dobrável, um varal retrátil ou um relógio de parede. E que, com algum treino, podemos manipular um taco de golf e também jogar pingue-pongue.

Estes e muitos outros artefatos construídos pelo homem fazem parte do nosso cotidiano e colaboram com o nosso bem-estar e diversão, desde que nascemos.

Hierarquizamos os objetos: em alguns projetamos nossos sentimentos e moods, noutros não prestamos atenção e queremos apenas que funcionem, que cumpram as suas funções. Foram feitos para isto, não é mesmo?

Sim e não. Não?

Não, porque tem gente que acredita (e prova) que estes objetos podem muito mais.

Guto Lacaz é um deles.

O artista, arquiteto e designer percebe a ‘magia’ do funcionamento das coisas e se encanta com seus mecanismos. Com humor, associa uma coisa e outra, como numa colagem tridimensional bota para funcionar, gerando uma coisa nova.

Seria uma herança dadá?Uma habilidade para jogar com o nonsense?Vocação para revelar a inutilidade dos objetos ou, ao contrário, provar suas ‘mil e uma’ utilidades?

Semana passada, na apresentação de ‘Máquinas III’, no Teatro Alliance Française, Guto Lacaz e Javier Judas nos mostraram um mundo maravilhoso.

Comprovaram que ‘as máquinas são simulações dos órgãos do corpo humano’ (Flusser, 2008:46) e foram além, zombaram da cultura, acabaram com os manuais de instruções e reorganizaram os símbolos, transformando aspiradores, escadas, tacos de golf, secadores de roupa e relógios em outras coisas e, assim, na matéria-prima da performance.

Flusser associa o ‘novo homem’ a um performer, para o qual a vida passou a ser um espetáculo. É ele o Homo Ludens e não mais o Homo Faber: ‘Não se trata mais de ações, e sim de sensações. O novo homem não quer ter ou fazer, ele quer vivenciar. Ele deseja experimentar, conhecer e, sobretudo, desfrutar. Por não estar interessado nas coisas, ele não tem problemas. (Flusser, 2008:58)

Guto parece contradizer um pouco isto, pois se interessa pelas coisas e pelas ações concretas. Desinteressa-se, sim, das coisas como sempre nos foram apresentadas. E parece não ter conflitos em ser, ao mesmo tempo, o homo faber (aquele das ações concretas, que produz e fabrica algo) e o homo ludens (o performer, aquele que vivencia e desfruta).

A platéia riu a cada situação.

Eu também ri, mas será que todos riam pelo mesmo motivo?

Eu ria toda vez que as ações desconsertavam algo em mim, como o varal aberto por um, na horizontal e por outro, na vertical, em tempos alternados, criando padrões óticos. Ou, quando os protetores coloridos e retráteis para vidros de carro foram colocados nas costas como mochilas ou asas e manipulados num bater de asas, ao mesmo tempo em que sobrepunha um ‘Hello!’ a uma voz que mais parecia um eco processado de Laurie Anderson.

Na verdade, eu ria, porque não podia dizer o tempo todo: GE-NI-AL!

E, por vezes, pensava como aqueles dois deveriam ter aprontado, quando pequeninhos...

O momento mais sublime de Javier foi quando tocou uma música no piano e as notas sairam esparsas, criando uma música meio débil.

Já Guto caiu, subiu no alto de uma escada e imóvel foi 'girado' para um lado e depois para outro, para trocar uma lâmpada. Fez chover bolinhas de pingue-pongue e finalizou a performance, hasteando uma bandeira pirata e junto com seu ‘assistente, ao som de ‘Sociedade Alternativa’ de Raul Seixas, massacrou a platéia com bombardeio de dardos plásticos de ventosas.

Depois, pediu para todos devolverem as bolinhas e os dardos, pois se tratavam de peças em extinção e, no outro dia, havia nova apresentação.

A partir dali, o mundo das coisas não foi mais o mesmo. Tudo foi, divertidamente, ampliado.

As possibilidades de tornar as coisas cotidianas e banais nas suas funções em maravilhosas nos foram apresentadas, graças ao ‘olhar’ sofisticado do mestre-designer.


Guto encerra a série de Performances, neste final de semana, com IOU - a fábula do Cubo e do Cavalo. www.aliancafrancesa.com.br

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OBS: fui aluna de Guto Lacaz no curso de extensão 'Performance' ministrado no Instituto de Artes da UFRGS/Porto Alegre, em 1986, onde cursava Bacharelado em Artes Plásticas. Desde lá nos tornamos amigos. Guto sempre acompanhou meus trabalhos, entre outras coisas, assistiu apresentações da minha banda Adventure.